Fonte: Por Leandro Sarmatz - Blog Companhia das Letras
Cinquenta tons de cinza, Harry Potter, As brumas de Avalon. Cada época tem seu best-seller, aquele sucesso acachapante para onde milhões de leitores convergem e que faz boa parte do mercado editorial rever conceitos e estratégias mercadológicas. Isso, claro, apareceu com mais força a partir da primeira metade do século XX. Antes, livros que vendiam muito – como Os sofrimentos do Jovem Werther, Os miseráveis ou os romances de Dickens – eram eventos eminentemente culturais e sociais. Ou seja: influenciavam, ditavam a maneira de escrever, arrebanhavam um público imenso e até mesmo produziam comportamentos absolutamente novos (a conhecida epidemia de suicídios pós-Werther é o exemplo mais eloquente; talvez tenha sido o primeiro cataclismo das massas jovens, muito antes do mundo das mortes de astros de rock e de seus fãs).
Quando Dom Quixote se impôs como um fenômeno, ainda no século XVII, rapidamente começou a circular em diversas culturas literárias. A primeira tradução surgiu já em 1612, na Inglaterra. É até hoje uma proeza, se levarmos em conta que estamos falando de um mundo em que não havia e-mail nem agentes literários. As traduções se seguiriam na França (1618) e na Alemanha (1621). A primeira edição portuguesa saiu mais de um século mais tarde, em 1794.
(Um parêntese geográfico-melancólico. Como se sabe, Portugal faz fronteira com a Espanha. E nem por isso, como se vê, o livro de Cervantes foi aclimatado antes em terras lusitanas. Fenômeno parecido ocorreu com Jorge Luis Borges no Brasil. As primeiras traduções começaram a aparecer somente depois das versões francesas dos anos 60. E como se sabe o Brasil faz fronteira com a Argentina. Claro que de lá para cá muito mudou em nosso mercado e nas relações literárias, mas é sempre melancólico lembrar desses dois casos.)
As traduções foram importantes, claro, para difundir o livro e igualmente para a criação de um clima cultural disposto ao tipo de narrativa forjada por Cervantes (o romance como gênero, afinal de contas, e que iria com o tempo se tornar um objeto hegemônico, na dita alta literatura e em suas formas mais populares), mas Dom Quixote inaugurou um outro fenômeno interessante que tendemos a relegar às notas de rodapé da história literária: escritores, muitos deles anônimos fãs da obra cervantina, se apropriariam do material (personagens, circunstâncias, episódios) para criarem suas versões do Quixote.
Jovem leitor, isso não lembra alguma coisa? Pois Dom Quixote, para além de todo o papel fundador na literatura ocidental, ainda por cima ajudou a produzir as primeiras fanfics de que se tem notícia. Fanfic, sim senhor: a tal da ficção criada por fãs, por leitores – como você e eu – que retomam um livro consagrado e ampliam as tramas, criam novas aventuras etc. Poucos anos depois do aparecimento do livro, inúmeras “continuações” eram escritas e vendidas a um público pouco informado. Esperteza pura, claro, mas isso serve para dar uma ideia sobre a avalanche criada rapidamente pelo livro.
Poucos livros ditos literários conseguem esse tipo de proeza hoje em dia, como se sabe. É mais comum que isso ocorra com sucessos destinados a um público mais ou menos específico. Essa talvez seja a riqueza maior de Dom Quixote. Um livro fundador (de um gênero, de uma tradição) e um dos maiores sucessos da história, uma obra profundamente enraizada na tradição literária e ao mesmo tempo com os pés fincados no imaginário popular. Um livro democrático, humano, inteligente e imensamente divertido.
Leandro Sarmatz é editor da Companhia das Letras.
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