As minhas lembranças desta idade são parcas. A memória da
infância é como um trailer. Nunca é como
um filme. Costumamos lembrar de certas passagens importantes, mas nunca de toda
a narrativa. A recuperação em partes trás consigo o suspense sobre o que não é
lembrado. O que será que eu fiz? O que fizeram comigo? O passado deixa de
existir pela impossibilidade de recordação.
Para tapar os buracos de nossa própria história, o único
recurso é perguntar para alguém que nos assistiu o que foi que aconteceu. O
relato de quem nos viu reconstrói algumas cenas cortadas na edição de nossas reminiscências.
O problema é que assim criamos memórias de expectador. Passamos a ver nossa
experiência como uma cena de filme e não do ponto de vista de quem viveu.
Me lembro de ter caído de bicicleta quando tentava aprender a
pedalar, mas não me recordo do ponto de vista do guidão e do caminho que segui até
a cambalhota da queda. A minha lembrança é da poltrona na frente da tela, vendo
o cambalear das rodas e a queda na terra. Na memória de expectador, vejo a
minha imagem no chão do terreno da esquina com o joelho machucado pelas pedras,
a tentativa de conter o choro e até o olhar para os lados pra ver quem tinha
visto o fracasso. Reconstituí minha memória pelo ponto de vista de quem me viu
caindo.
Quando eu era criança, na minha cidade não tinha restaurante.
Pra comer uma pizza, tínhamos de ir até uma de duas cidades vizinhas. A pizza
compensava a estrada de tão gostosa. Todos se arrumando para sair, era um
ritual familiar. Me lembro que as duas pizzarias tinham seus distrativos para enganar
a espera da redonda. Uma tinha um aquário cheio de peixes coloridos, a outra
tinha um aquário na parede com o forno a lenha de chamas vivazes e dançantes, os
potes cheios de ingredientes e os pizzaiolos. Guardo o ritmo da sequência de
montagem e o cuidado giratório para assar a pizza por igual. Era apontar a
cabeça e eles me presenteavam com uma bolota de massa. Naquelas mesas, vivi a
primeira infância do padeiro.
Depois da pizza, tinha a sobremesa. Pedíamos, os três irmãos,
uma musse de chocolate. Eu devorava em segundos. O Caio, meu irmão, espaçava em
minutos algumas poucas colheradas. Ele costumava levar a sobremesa pra casa e
ir comendo um pouco por dia, me fazendo passar vontade. Nas minhas lembranças,
enxergo a mesa de cima e a interação da minha família como se assistisse a um
seriado.
Neste trecho do trailer
da minha infância, tem uma única recordação da perspectiva dos meus olhos. Os
irmãos de barriga cheia, do mais velho ao caçula, não havia quem resistisse ao
embalar do carro no caminho da volta. Era o melhor cochilo da semana. Quando o
carro parava de balancear e eu sentia pender para o lado esquerdo, era sinal
que meu pai embocava na garagem. O fim do passeio.
Pensando bem, nessa cena da volta da pizzaria, eu estava
sempre dormindo. Não estava totalmente consciente pra saber como era. Não
adianta. É muito roteirista para pouco filme. A cada vez que é contada, a
memória é alterada. E quando é contada como tendo sido vista e não vivida, deixa
de ser uma memória e passa a ser uma história.
Fonte: Crônica do Jornal DEMOCRATA - Caderno 2
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