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terça-feira, 7 de maio de 2013

A Memória da Infância é Um Trailer

Quando eu era criança, minha mãe barbeava minhas blusas de lã. Ela descobriu que o "prestobarba" resolvia o problema dos fiapos e bolinhas. Quando eu era criança, meu pai não me deixava sair de casa sem os cabelos devidamente penteados. Entrando no carro para ir à escola, ele tolerava o laço do cadarço torto pra um dos lados no bamba azul marinho, mas não admitia os cabelos desgranhados de travesseiro. Se eu poupava o esforço só penteando a frente, ele me fazia descer do carro e acertar a parte detrás do cocuruto.


Ao aparar as rebarbas do meu suéter sem espuma de barbear, minha mãe me deixava de peito limpo para enfrentar o frio da estação. Ao exigir que penteasse meus cabelos antes de sair de casa, meu pai me dava cara de banho para os dias afervorados da infância.

As minhas lembranças desta idade são parcas. A memória da infância é como um trailer. Nunca é como um filme. Costumamos lembrar de certas passagens importantes, mas nunca de toda a narrativa. A recuperação em partes trás consigo o suspense sobre o que não é lembrado. O que será que eu fiz? O que fizeram comigo? O passado deixa de existir pela impossibilidade de recordação.

Para tapar os buracos de nossa própria história, o único recurso é perguntar para alguém que nos assistiu o que foi que aconteceu. O relato de quem nos viu reconstrói algumas cenas cortadas na edição de nossas reminiscências. O problema é que assim criamos memórias de expectador. Passamos a ver nossa experiência como uma cena de filme e não do ponto de vista de quem viveu.

Me lembro de ter caído de bicicleta quando tentava aprender a pedalar, mas não me recordo do ponto de vista do guidão e do caminho que segui até a cambalhota da queda. A minha lembrança é da poltrona na frente da tela, vendo o cambalear das rodas e a queda na terra. Na memória de expectador, vejo a minha imagem no chão do terreno da esquina com o joelho machucado pelas pedras, a tentativa de conter o choro e até o olhar para os lados pra ver quem tinha visto o fracasso. Reconstituí minha memória pelo ponto de vista de quem me viu caindo.

Quando eu era criança, na minha cidade não tinha restaurante. Pra comer uma pizza, tínhamos de ir até uma de duas cidades vizinhas. A pizza compensava a estrada de tão gostosa. Todos se arrumando para sair, era um ritual familiar. Me lembro que as duas pizzarias tinham seus distrativos para enganar a espera da redonda. Uma tinha um aquário cheio de peixes coloridos, a outra tinha um aquário na parede com o forno a lenha de chamas vivazes e dançantes, os potes cheios de ingredientes e os pizzaiolos. Guardo o ritmo da sequência de montagem e o cuidado giratório para assar a pizza por igual. Era apontar a cabeça e eles me presenteavam com uma bolota de massa. Naquelas mesas, vivi a primeira infância do padeiro.

Depois da pizza, tinha a sobremesa. Pedíamos, os três irmãos, uma musse de chocolate. Eu devorava em segundos. O Caio, meu irmão, espaçava em minutos algumas poucas colheradas. Ele costumava levar a sobremesa pra casa e ir comendo um pouco por dia, me fazendo passar vontade. Nas minhas lembranças, enxergo a mesa de cima e a interação da minha família como se assistisse a um seriado.

Neste trecho do trailer da minha infância, tem uma única recordação da perspectiva dos meus olhos. Os irmãos de barriga cheia, do mais velho ao caçula, não havia quem resistisse ao embalar do carro no caminho da volta. Era o melhor cochilo da semana. Quando o carro parava de balancear e eu sentia pender para o lado esquerdo, era sinal que meu pai embocava na garagem. O fim do passeio.

Pensando bem, nessa cena da volta da pizzaria, eu estava sempre dormindo. Não estava totalmente consciente pra saber como era. Não adianta. É muito roteirista para pouco filme. A cada vez que é contada, a memória é alterada. E quando é contada como tendo sido vista e não vivida, deixa de ser uma memória e passa a ser uma história.

Fonte: Crônica do Jornal DEMOCRATA - Caderno 2

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